Esse nicho de mercado crescente na indústria da moda tem como principal chamariz o fato de ser uma forma de "consumo sustentável"
Mei Fácil - Brechós são de fato uma alternativa sustentável?
A ideia pode não ser nova, mas a atividade é mais estimulante do que nunca. O brechó é um tipo de atividade comercial com mais de um século de existência. Também chamado de segunda mão (second hand, em inglês), usado (pre-owned, em inglês), vintage ou moda circular, esse setor da indústria fashion cresce exponencialmente.
Dados da empresa Statista mostram que este mercado avança no mundo todo e gerou US$ 4,9 bilhões em 2022. Até 2027, estima-se US$ 14,7 bilhões. No Brasil, a projeção é de que o segmento de moda circular cresça de 15% a 20% nos próximos sete anos.
Brechós e Machado de Assis
Reprodução Facebook - Loja Belchior, no Rio de Janeiro
No Brasil, a origem dos brechós, estabelecimentos associados à venda de roupas e objetos usados, remonta ao século XIX, no Rio de Janeiro (RJ), então capital federal. Um indivíduo chamado Belchior abriu uma loja para comercializar produtos de segunda mão. Com o tempo, o nome Belchior sofreu transformações linguísticas e se tornou o que hoje conhecemos como "brechó."
Machado de Assis registra a existência dessa loja de artigos de segunda mão em seu conto Ideias de Canário. Publicado em 1889, no livro "Páginas Recolhidas", o texto coloca questões existenciais no bico de um pássaro. Na história, homem e a ave, que viveu toda a vida dentro de uma gaiola, discutem as muitas visões de mundo possíveis
O escritor cita o brechó nas primeiras linhas do conto:
''No princípio do mês passado, — disse ele, — indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de uma loja de belchior.''
Parentes dos sebos, especializados na venda de livros usados, oferecem uma ampla variedade de produtos, desde roupas e retratos antigos até colares, pulseiras, bonés, lenços, discos de vinil, louças, relógios e calçados, entre muitos outros itens que sua imaginação possa conceber.
Mercados de Pulgas de Paris
Paris Flea Market - Mercado de Pulgas na virada do século XIX para o século XX
Na Europa, os brechós também nasceram no final do século XIX. Em Paris, esse segmento para comercializar itens de segunda mão ganhou popularidade durante as crises provocadas pela Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Isso ocorreu principalmente por meio da Cruz Vermelha, que vendia produtos doados a preços muito acessíveis. Desde então, essas lojas mantiveram seu apelo, seja como forma de auxiliar os menos favorecidos ou como um negócio para vender produtos a preços mais baixos.
Esse comércio ocorria, principalmente, em feiras ao ar livre. Como as peças eram usadas e não havia muita preocupação com a higiene, insetos como pulgas não eram incomuns, daí a origem do nome “mercado de pulgas”.
Mercado de luxo
GettyImages - Burberry já incinerou itens para manter escassex
Nos últimos anos, a tríade das crises climática, financeira e pandêmica com efeito global gerou e impulsionou um fenômeno, no mínimo, curioso: os brechós de luxo. Se antes eram lojas voltadas para consumidores menos favorecidos, agora se multiplicam iniciativas para compra e venda de artigos de altíssimo valor. Sempre com o apelo, questionável, da "sustentabilidade".
O mercado de luxo tem uma dinâmica particular. Para que mantenha sua essência, é necessário que ele permaneça associado à ideia de escassez. Quanto mais exclusivo, maior o seu valor. Embora algumas marcas de renome no mercado de luxo possam disponibilizar parte de sua coleção de roupas em outlets, elas geralmente não realizam liquidações de itens como bolsas, relógios, perfumes e casacos exclusivos que não foram vendidos. Afinal, isso afetaria de forma irremediável a aura de "inacessibilidade" que envolve essas marcas.
A solução para manter essa aura especial para esse itens luxuosos era simplesmente eliminar o estoque: de acordo com dados do governo francês divulgados em 2020, mais de 650 milhões de euros (cerca de R$ 3,6 bilhões) em produtos de consumo novos são descartados ou destruídos anualmente na França. Em 2018, a marca de luxo britânica Burberry, por exemplo, foi alvo de um escândalo ao ser revelado que mais de R$ 140 milhões em estoque foram queimados.
O barulho foi tão grande que desde 1º de janeiro de 2022 vigora na França uma lei antidesperdício, que proíbe a destruição de produtos não vendidos. Essa medida impulsionou ainda mais o crescente mercado de produtos de luxo de segunda mão, onde bilionários ou milionários disponibilizam itens que não desejam mais para compradores mais economicamente restritos.
Discurso da sustentabilidade
O discurso da sustentabilidade é uma constante nesse setor, e com boas razões. A comercialização de roupas usadas promete reduzir significativamente o impacto socioambiental, evitando a produção de novas peças e toda a cadeia de produção da moda convencional. Estudos recentes sugerem que optar por roupas de segunda mão, em vez de novas, pode diminuir as emissões de carbono em até 25%.
Entretanto, é importante reconhecer que esse setor não está isento de seus próprios desafios socioambientais. Isso ocorre devido às complexidades envolvidas, incluindo estruturas organizacionais, fornecedores, logística de transporte e consumo de energia, entre outros fatores.
À medida que o mercado de roupas de segunda mão cresce globalmente, essas complexidades se multiplicam, e os desafios se tornam mais evidentes.
Alguns desses desafios incluem o risco de um consumo excessivo que pode lembrar o modelo "fast fashion" (moda rápida), a preocupação com o "colonialismo de resíduos", no qual países do Norte Global exportam roupas usadas para países do Sul Global, e a necessidade de avaliar a procedência das peças vendidas.
Portanto, ao ouvir alguém afirmar que os brechós são uma opção sustentável, é importante lembrar que a realidade é mais complexa. A conscientização e uma abordagem crítica são essenciais para promover uma verdadeira sustentabilidade a longo prazo no mercado de roupas de segunda mão.
Marcus Steinmeyer - Eloísa Artuso
Eloísa Artuso trabalha com justiça socioambiental na intersecção entre clima, gênero e moda. Ela é pesquisadora, designer estratégica e líder de projetos. Confundadora do Instituto Febre, organização social voltada à pesquisa, estratégia e conteúdo multimídia, e do Fashion Revolution Brasil, maior movimento de ativismo da moda do mundo.
Para ela, o mercado de segunda mão pode ajudar as reduzir os impactos da indústria da moda no meio ambiente ao reduzir a nossa dependência da compra de itens novos e, com isso, o uso de novos recursos: fibras, uso de terra, água, energia, químicos etc. Além de dar um alívio na dependência de novas tendências, cada vez mais rápidas e efêmeras.
É uma solução, não a única e, como todas as soluções, precisa ser contextualizada. Porque ao mesmo tempo que se mostra uma boa alternativa, pode ainda trazer contradições ou outras complicações.
Eloísa cita exemplos das contradições da dita "sustentabilidade" desse segmento de roupas de segunda mão.
O mercado, inclusive o de luxo, se utiliza cada vez mais desse recurso de revenda, no entanto, a mentalidade de consumo, que leva as pessoas a querer sempre um item novo (mesmo que usado) não muda.
Existe um problema enorme do grande movimento de doações de roupas usadas, que se tornou um mercado global, dos países do Norte Global para os países do Sul Global, em que o imenso volume de peças tem inundado os mercados de África, como o de Kantamanto em Gana (e posteriormente suas praias ou lixões), os brechós da Guatemala ou criando as montanhas de descarte no deserto do Atacama.
Há ainda a falácia de grandes empresas e varejistas de moda, no Brasil e no mundo, que prometem revender ou reciclar todos os itens que estão sendo depositados nos sistemas de coleta de suas lojas, mas pouco se sabe sobre o que, de fato, acontece com essas peças. Pesquisas mostraram que, na maior parte, as peças não tiveram o destino de acordo com as promessas das marcas. Nesse sentido, a falta de transparência ainda impera.
O olhar de uma dona de brechó
Paula Carrubba - Lana Guimarães na fachada do brechó La Sacuelita
Lana Guimarães é turismóloga com especialidade em turismo cultural. Em 2019, ela abriu o brechó La Sacuelita. Naquele início, o empreendimento tinha uma loja física de 10m2, chegou a ocupar um espaço de 100m2, sobreviveu à pandemia e experimentou um espaço coletivo. Em dezembro de 2022 a loja foi fechada e, atualmente, está itinerante por feiras no DF e no Instagram @la.sacuelita.
A questão da sustentabilidade do brechó sempre instigou Lana, desde que iniciou a jornada de La Sacuelita. Ela conta que observa e estuda o ciclo das peças que passam por ela. Considerando os estudos e dados catastróficos sobre impactos ambientais causados pela indústria da moda, ela comenta que sente a pressão similar a que consumidores sofrem com relação ao consumo de água.
Lana relembra dos apelos durante a crise hídrica dos anos 2000 - e repetida ao longo dos anos - de cobrança para que famílias diminuíssem o tempo de banho, a quantidade de água no aguar das plantas ou no lavar as roupas etc. Embora ela considere importante a adesão da sociedade para um consumo consciente de água, considera injusto que essa responsabilidade recaia sobre os ombros dos cidadãos. Afinal, reforça Lana, não se vê tanto empenho para mudar o modo de manejo da água pela indústria do agronegócio, por exemplo, que seca rios e dizima ecossistemas em uma velocidade assombrosa.
Assim, considerando a indústria da moda como altamente impactante para a natureza, entendo que o mercado de segunda mão é uma possibilidade de escoamento da quantidade exagerada da produção de peças (roupas, calçados e acessórios) e de aumento da vida útil de muitas delas, uma vez que o processo educativo em torno desse tema tem aumentado a consciência de uma parcela de consumidores. Mas não, ainda me custa acreditar que temos um poder real de mitigar os impactos ambientais em escala mundial enquanto houver o uso indiscriminado de recursos naturais e de recursos humanos de forma tão desigual e injusta.
Por fim, Lana observa que se empreendedores de brechós como ela conseguirem manter os negócios de forma minimamente sustentável, já seria uma ótima contribuição para o planeta. Ela recomenda três pontos para alcançar essa meta:
pagar contas, reinvestir constantemente e viver com dignidade (podendo ter e prover as horas necessárias de descanso e lazer)
cuidar dos descartes com responsabilidade
contribuir efetivamente na ampliação da consciência de consumo, já estaremos ajudando a mitigar o impacto socioambiental numa escala local.
Economia circular
Para uma mudança em escala na indústria da moda, que de fato gere impactos estruturais, um dos caminhos é a circularidade. Esse conceito é a linha mestra da Fundação Ellen MacArthur.
Na economia contemporânea, seguimos um modelo linear em que retiramos materiais da Terra, produzimos bens a partir deles e, eventualmente, descartamos esses produtos como resíduos. Em contrapartida, a economia circular visa evitar a geração de resíduos desde o princípio.
A economia circular se fundamenta em três princípios orientados pelo design:
Eliminar resíduos e poluição
Circular produtos e materiais, mantendo seu valor máximo
Regenerar a natureza.
Essa abordagem promove a transição para energias e materiais renováveis e desvincula a atividade econômica do esgotamento de recursos finitos. É um sistema resiliente e benéfico tanto para empresas quanto para o meio ambiente.
A economia circular oferece uma estrutura de soluções sistêmicas que enfrenta desafios globais, como mudanças climáticas, perda de biodiversidade, resíduos e poluição.
Para que isso funcione, todos os elementos do nosso sistema atual de extração, produção e descarte precisam ser revistos: desde a gestão de recursos até a forma como fabricamos e utilizamos produtos, bem como o tratamento dado aos materiais após o uso. Somente assim poderemos criar uma economia circular próspera, que beneficie a todos dentro dos limites do nosso planeta.
Essa transformação nos proporciona as ferramentas necessárias para enfrentar questões urgentes, como mudanças climáticas e perda de biodiversidade, sem deixar de atender às necessidades sociais fundamentais. A economia circular capacita-nos a promover a prosperidade, criar mais empregos, fortalecer a resiliência e, ao mesmo tempo, reduzir as emissões de gases do efeito estufa, minimizar o desperdício e combater a poluição.
Fonte: Revista Forum
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